segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemou... Versos à boca da noite- Antologia poética - Carlos Drummond de Andrade




Versos à boca da noite

Antologia poética
Carlos Drummond de Andrade



Sinto que o tempo sobre mim abate

sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...

Uma aceitação maior de tudo,

e o medo de novas descobertas.


Escreverei sonetos de madureza?

Darei aos outros a ilusão de calma?

Serei sempre louco? Sempre mentiroso?

Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?


Há muito suspeitei o velho em mim.

Ainda criança, já me atormentava.

Hoje estou só. Nenhum menino salta

de minha vida, para restaurá-la.


Mas se eu pudesse recomeçar o dia!

Usar de novo minha adoração,

meu grito, minha fome... Vejo tudo

impossível e nítido, no espaço.


Lá onde não chegou minha ironia,

entre ídolos de rosto carregado,

ficaste, explicação de minha vida,

como os objetos perdidos na rua.


As experiências se multiplicaram:

viagens, furtos, altas solidões,

o desespero, agora cristal frio,

a melancolia, amada e repelida,


e tanta indecisão entre dois mares,

entre duas mulheres, duas roupas.

Toda essa mão para fazer um gesto

que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo

selada por arbustos agressivos.

(Um homem se contempla sem amor,

se despe sem qualquer curiosidade.)


Mas vêm o tempo e a ideia de passado

visitar-te na curva de um jardim.

Vem a recordação, e te penetra

dentro de um cinema, subitamente.


E as memórias escorrem do pescoço,

do paletó, da guerra, do arco-íris;

enroscam-se no sono e te perseguem,

à busca de pupila que as reflita.


E depois das memórias vem o tempo

trazer novo sortimento de memórias,

até que, fatigado, te recuses

e não saibas se a vida é ou foi.


Esta casa, que miras de passagem,

estará no Acre? na Argentina? em ti?

Que palavra escutaste, aonde, quando?

seria indiferente ou solidária?


Um pedaço de ti rompe a neblina,

voa talvez para a Bahia e deixa

outros pedaços, dissolvidos no atlas,

em País-do-riso e em tua ama preta.


Que confusão de coisas ao crepúsculo!

Que riqueza! sem préstimo, é verdade.

Bom seria captá-las e compô-las

num todo sábio, posto que sensível:


uma ordem, uma luz, uma alegria

baixando sobre o peito despojado.

E já não era o furor dos vinte anos

nem a renúncia às coisas que elegeu,


mas a penetração no lenho dócil,

um mergulho em piscina, sem esforço,

um achado sem dor, uma fusão,

tal uma inteligência do universo


comprada em sal, em rugas e cabelo.

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