Walt Whitman – Canção de Mim Mesmo (trecho inicial,
traduzido)
1.
Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,
E aquilo que eu presumir também presumirás,
Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.
Descanso e convido a minha alma,
Deito-me e descanso tranquilamente, observando uma haste da
relva de verão.
Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo,
deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus
pais também o mesmo,
Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde
perfeita, dou início,
Com a esperança de não cessar até morrer.
Crenças e escolas quedam-se dormentes
Retraindo-se por hora na suficiência do que não, mas nunca
esquecidas,
Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em
qualquer casualidade,
A natureza sem estorvo, com energia original.
2.
Casas e cômodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de
perfumes,
Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me
deleito,
A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei.
A atmosfera não é um perfume, mas tem o gosto da essência,
não tem odor,
Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela
apaixonado
Irei até a colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu
disfarce e ficarei nu,
Estou louco para que ela entre em contato comigo.
A fumaça da minha própria respiração,
Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda,
forquilha e vinha,
Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a
passagem de sangue e de ar através de meus pulmões,
O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e
das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro,
O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do
vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um
abraço,
A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se
agitam os ramos flexíveis,
O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos
e colinas,
O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de
mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol.
Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande
demais?
Praticaste tanto para aprender a ler?
Sentiste tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas?
Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de
todos os poemas,
Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis para
encontrar),
Não possuíras coisa alguma de segunda ou de terceira mão,
nem enxergarás através do olhos de quem já morreu, nem te alimentarás outra vez
dos fantasmas que há nos livros.
Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem
tampouco receberás coisa alguma de mim,
Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo
por ti mesmo.
3.
Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e
sobre o fim,
Mas não falo nem do início nem do fim.
Nunca houve mais iniciativa do que há agora,
Nem mais juventude ou idade do que há agora,
E jamais haverá mais perfeição do que há agora,
Nem mais paraíso ou inferno do que há agora,
O anseio, o anseio, o anseio,
Sempre o anseio procriador do mundo.
Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre
substância e acréscimo, sempre o sexo,
Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma
geração de vida.
Não vale elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim.
Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa
verticalidade, bem fixados, suportados em vigas,
Robustos como um cavalo, afetuosos, altivos, elétricos,
Eu e este mistério aqui estamos, de pé.
Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que
não é minha alma.
Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo
visível
Até que este se torne invisível e receba a prova por sua
vez.
Apresentando o melhor e isolando do pior, a idade agasta a
idade,
Conhecendo a adequação e a equanimidade das coisas, enquanto
eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo.
Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de
todo homem cordial e limpo.
Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil
e nenhum será menos familiar que o resto.
Estou satisfeito – vejo, danço, rio, canto;
Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite
inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,
Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a
casa com sua exuberância,
Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus
olhos,
Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela
E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,
O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à
frente?
4.
Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta
Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha
infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação,
As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades,
autores antigos e novos,
Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas,
A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que
eu amo,
A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato
doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações,
Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de
notícias duvidosas, os terríveis eventos;
Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra
vez,
Mas não são o meu verdadeiro Ser.
Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato
eu sou,
Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso,
unitário,
Olha para baixo, está ereto, ou descansa o braço sobre certo
apoio impalpável,
Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o
que está por vir,
Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado
por ele.
No passado vejo meus próprios dias quando suei através do
nevoeiro com lingüistas e contendores,
Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e
aguardo.
(…)
(Walt Whitman – Canção de Mim Mesmo)
(Poema do livro Folhas de relva. São Paulo: Martin Claret,
2006, p. 49. Trecho inicial. O poema todo é bem maior.)
http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/walt-whitman-cancao-de-mim-mesmo/
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